O trabalho doméstico ainda é pouco reconhecido como um emprego formal.| Foto: Desigini
O Brasil ainda enfrenta um problema grave que, muitas vezes, passa despercebido pela maior parte da população: o trabalho escravo contemporâneo. Presente tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas, essa prática assume diferentes formas e continua violando direitos fundamentais de trabalhadores em todo o país.
A chamada “escravidão moderna” pode se manifestar por meio de alojamentos em condições degradantes, jornadas exaustivas, falta de acesso à água potável e alimentação adequada, além de situações em que o trabalhador é impedido de deixar o local de trabalho ou mantido isolado da família e da comunidade.
Trabalho doméstico e vulnerabilidade
Nas cidades, a escravidão contemporânea é, muitas vezes, encontrada dentro das próprias casas. O trabalho doméstico ainda é pouco reconhecido como um emprego formal, sujeito às mesmas normas da legislação trabalhista. Por isso, diversos casos de exploração e trabalho análogo à escravidão vêm sendo descobertos em lares, tanto nas zonas urbanas quanto nas rurais.
O termo trabalho doméstico remunerado refere-se à atividade prestada em domicílio, por pessoa física, realizando tarefas domésticas ou de cuidado para uma família, sem fins comerciais.

Trabalho doméstico remunerado refere-se a um trabalho exercido por uma pessoa de cuidados domésticos em geral. | Foto: Getty Images
No Brasil, a Lei Complementar nº 150/2015 regulamenta o trabalho doméstico e define quem é considerado empregado(a) doméstico(a). Já a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio da Convenção nº 189 (2011), caracteriza o trabalho doméstico como “aquele efetuado em ou para um ou mais agregados familiares, no âmbito de uma relação de emprego e em caráter profissional”.
Casos recentes no Cariri
Em 2025, diversos casos de trabalho análogo à escravidão vieram à tona no Cariri. Em um dos episódios mais recentes, ocorrido em julho, no município do Crato, uma idosa foi resgatada após 37 anos de trabalho em condições análogas à escravidão.
De acordo com a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), a mulher foi encontrada em uma residência na zona rural, submetida a jornadas exaustivas, das 5h às 22h, sem folgas, férias ou remuneração. Ela realizava múltiplas tarefas domésticas, cuidava de animais e ainda auxiliava nos cuidados de outra idosa, após o expediente de uma funcionária remunerada.
Outro caso ocorreu em 2018, em Juazeiro do Norte, quando uma mulher foi presa em flagrante por manter uma venezuelana em situação de escravidão doméstica. Segundo as investigações do Ministério Público do Ceará (MPCE), a vítima ficou três meses sem receber salário, sem alimentação adequada e sem acesso a banheiro. Além disso, era impedida de se comunicar com familiares e vizinhos, sendo constantemente ameaçada de deportação.
A trabalhadora havia vindo ao Ceará por meio da ONG Fraternidade sem Fronteiras, com a promessa de receber um salário mínimo, moradia e alimentação — condições que nunca foram cumpridas.
Casos como esses revelam a fragilidade das relações de trabalho doméstico no país e a dificuldade de garantir a fiscalização efetiva dentro das residências.
Avanços legais: a PEC das Domésticas
Um marco importante na luta por direitos da categoria foi a PEC das Domésticas, aprovada em 2 de abril de 2013, que alterou a Constituição Federal para estabelecer igualdade de direitos trabalhistas entre trabalhadores domésticos e os demais empregados urbanos e rurais.

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A proposta assegura benefícios como salário-maternidade, auxílio-doença, pensão por morte, aposentadoria, jornada de oito horas diárias e 44 semanais.
Dois anos depois, em 2015, a Lei Complementar nº 150 regulamentou a emenda e ampliou as garantias da categoria, incluindo a obrigatoriedade de recolhimento do FGTS, acesso ao seguro-desemprego, salário-família, adicional noturno, horas extras e indenização por viagens a trabalho.
Apesar dos avanços, a informalidade ainda predomina. Segundo o advogado trabalhista Evandro Almeida, “essa informalidade acentua os riscos de exploração, jornadas extensas, ausência de controle de horas extras, além de menor acesso à previdência e proteção social”.
Controle de jornada: um direito pouco conhecido
Poucos empregadores sabem que o controle de ponto é obrigatório desde a Emenda Constitucional nº 72/2013, regulamentada pela Lei Complementar nº 150, artigos 12 a 14.
“Quase ninguém sabe disso, mas a empregada doméstica, assim como em outras profissões, deve registrar os horários de chegada, saída e intervalos”, explica o advogado Evandro Almeida.
O controle pode ser feito de diferentes formas, desde que reflita a jornada real, seja assinado pela trabalhadora (em caso de controle manual) e fique disponível para fiscalização ou comprovação judicial.
Entre os métodos aceitos estão:
- Folha de ponto assinada;
- Aplicativos de registro de ponto (como Doméstica Legal e Ponto Doméstico);
- Relógio de ponto eletrônico;
- Planilha impressa com horários diários de entrada, intervalo e saída.
Como garantir os direitos das trabalhadoras domésticas?
O trabalho doméstico remunerado, embora muitas vezes relegado a segundo plano, é fundamental para o funcionamento cotidiano de milhões de lares e para a economia do país. Apesar de representar uma das ocupações mais antigas e numerosas do Brasil, ainda é marcado por desigualdades históricas e pela falta de reconhecimento social.
Nas últimas décadas, o Brasil avançou em termos de legislação e proteção jurídica da categoria. No entanto, os desafios persistem — da informalidade à invisibilidade, da desvalorização à precariedade das condições de trabalho.
Garantir um trabalho doméstico digno vai muito além de cumprir a lei. Significa assegurar, na prática, jornada de trabalho respeitada, remuneração justa, proteção social efetiva e igualdade de tratamento. É também reconhecer o direito à voz ativa das trabalhadoras, fortalecendo o diálogo, a fiscalização e a valorização desse ofício que sustenta tantas outras atividades da sociedade.

