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O preço de ser heroína na pandemia
Uma enfermeira e uma técnica em enfermagem de Juazeiro do Norte falam sobre exercer a profissão na maior crise epidemiológica contemporânea. O que passa a categoria, o que precisam abdicar e como podemos aprender com isso?
Izabelly Macêdo

A linha de frente é um dos locais mais estratégicos numa guerra. Os combatentes posicionados ali têm a missão de executar os primeiros ataques, achar os pontos fracos do adversário e minar o campo até derrotá-lo. São posicionados ali aqueles que combatem em qualquer tipo de terreno, os mais resistentes. Independente do resultado, eles sabem que se não saírem mortos, sairão feridos. Existe uma glória e uma dor em torno desse tipo de autoconsciência. Alguns são voluntários, fazem questão de estar ali. Outros não têm escolha. E todos precisam de coragem. 

Aqui veremos dois exemplos vivos de pessoas que estão, querendo ou não, na linha de frente. Conversei com uma enfermeira e uma técnica em enfermagem de Juazeiro do Norte que estão em contato direto com pacientes suspeitos e diagnosticados com Covid-19. As mulheres representam 85% dos mais de 2 milhões de profissionais da enfermagem no Brasil. Nossas entrevistadas estão na mesma linha de combate, algo as une, mas há diferenças nos modos de ver. Para preservá-las, terão nomes resguardados. As identificaremos aqui como Idealista e Realista. O que há por trás da coragem dessas recém-intituladas heroínas e como suas visões de mundo podem nos ajudar a diminuir o peso da guerra sobre elas? 

“Como você está?”, perguntei. Idealista disse “to cansada, mas confiante com o dia a dia!”. Ela é enfermeira da UPA e coordenadora da Unidade Sentinela, montada em Juazeiro para atender os suspeitos acometidos pelo Covid-19. A função de coordenar o grupo de profissionais surgiu com a pandemia e agora todos os seus dias são dedicados ao trabalho. Quando está distante da Sentinela, atende aos chamados pelo celular a qualquer momento. A enfermeira confessa que no início sentiu medo, mas logo se inteirou do assunto e resolveu enfrentar. Diz sentir prazer em servir à população e todos os dias reza para que tudo passe logo. 

Realista sentiu um medo que partiu do útero. Quis desistir ao cogitar levar o vírus para casa e infectar os quatro filhos pequenos, que ficam com a mãe e a avó quando está no trabalho. Nos plantões de 12 horas só vai em casa para dormir. Ela chega, os filhos estão dormindo e precisa sair antes de acordarem. No processo aflito de decisão, a ficha caiu. Nesse momento, ela é soldado convocado. Várias outras pessoas precisam dos cuidados dela na Clínica Covid, espaço montado dentro do Hospital Regional do Cariri. Mesmo com medo, vai todos os dias. Da clínica, dois pacientes já saíram curados – as duas curas foram os momentos mais gratificantes que Realista recebeu nesse período. 

O heroísmo da classe enfermeira vem antes do Covid. No Brasil, os mais de 2 milhões de profissionais estão no limite há muito tempo. Jornadas de trabalho dupla para garantir melhor renda, sistema de saúde sucateado, falta de equipamentos e o desgaste emocional dos confinamentos intermitentes nos hospitais são os inimigos diários. O Projeto de Lei para diminuir de 45h para 30h a carga horária da categoria a nível nacional está em trâmite de urgência no Congresso há 20 anos. Se o pedido fosse um paciente urgente, estaria nas estatísticas de óbitos arquivadas. Nesta quinta-feira (16) foi solicitado mais uma vez no plenário que entrasse em debate devido a pandemia. 

O caos vivido em outras cidades do país ainda não chegou ao sistema de saúde de Juazeiro. Até quinta-feira (15) o Brasil registrou 30 mortes de profissionais da enfermagem por coronavírus. Nossas entrevistadas asseguram que por enquanto trabalham supridas de materiais de proteção e tentam manter a tranquilidade. Idealista, por ser líder de um grupo, busca incentivar as outras mulheres ao aparentarem desânimo. Realista diz estar “melhor do que imaginava”, no entanto, já se prepara emocionalmente para o pior. 

A família é o ponto que dói. Se as pessoas pensassem no coletivo tanto quanto elas, se os governos dessem assistência à categoria, seria mais seguro enfrentar a batalha. Ser mãe é o que pesa em Realista. Em Idealista, é ser filha de uma senhora do grupo de risco. Dar o título de “heroína” não fortalece se o negacionismo perdurar. Ao contrário, aumenta o peso da responsabilidade sobre elas que, sobretudo, precisam salvar a si. Esse  anti-cooperativismo coloca em xeque todo o esquema montado para vencer a doença. Se o desequilíbrio comportamental continuar, “infelizmente podem faltar equipamentos, como por exemplo respiradores”, alerta Realista. 

De fato, o coronavírus tem feito a sociedade reavaliar hábitos e prioridades. Não voltaremos ao passado, embora muito provavelmente alguns fantasmas perdurem. A saúde pública e a realidade dos profissionais está em evidencia no mundo inteiro, e provavelmente será pauta dos próximos anos na esfera política. Só que para Realista isso é discurso temporário. Para ela, cairão no esquecimento quando tudo passar. “É um momento que todos estão em pânico, eles veem que só tem nós da área da saúde que podemos ir à luta contra essa pandemia”, diz. Em contraponto, Idealista projeta: “espero que todo mundo enxergue a enfermagem com outros olhos, que nos valorizem mais e aprendam a importância da nossa classe”. 

O que podemos aprender com as heroínas? Elas são humanas como todas nós. Se balançam no vai e vem do sonho doce e da ácida realidade. Olham ao redor, as rachaduras fundas revelam que a estrutura está por um fio, mas se apegam ao que têm e ao que ainda não conquistaram. A força surge daí, desse movimento tempestuoso imprevisível. Nem romantizar a tragédia, nem mergulhar na catástrofe. Nem esquecer os erros que findaram no hoje, nem deixá-los na mala que levaremos pro futuro. Talvez essas pessoas que olhamos hoje com maior atenção e chamamos de heroínas nem queriam ser. Ser heroína da sua própria vida é uma escolha, ser do mundo é imposição. Que a coragem delas seja o nosso espelho diário. E a cooperação nos sirva para sabermos que nosso lugar no mundo é também em função do outro. 

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Miséria.

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