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Bolsa Família, domésticas e patroas: um retrato da pandemia
O Bolsa Família encolhe, as patroas usam empregadas domésticas como escudo e as infectam. Elas precisam do isolamento, mas também não estão seguras em casa. O grupo de risco ultrapassa idade e imunodeficiência. Ele tem gênero e classe social.
Izabelly Macêdo

A primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro, no dia 17 de março, foi uma mulher, de 63 anos, doméstica, infectada pela patroa que havia voltado da Itália. Nas reportagens veiculadas nacionalmente, a família da vítima pediu que seu nome não fosse citado para evitar retaliações. A mulher, doméstica desde da juventude, acumulava doenças como hipertensão, diabetes e infecção urinária. Dedicada à casa desta empregadora há 10 anos, ela só voltava para o própria lar nas quintas. Ficava a sexta e o sábado, no domingo, retornava ao trabalho. Dormiu no trabalho mais do que dormiu em casa. Por sobrevivência, teve que se fazer ausente para os seus e presente para a patroa. Se isolou dos seus por imposição do trabalho, e sua empregadora sequer se isolou para não infectá-la. 

Agora, tragamos mais perto de nós. Fortaleza, 19 de março, 24 casos de coronavírus confirmados no Ceará. O repórter está em um supermercado para falar sobre o abastecimento de alimentos em meio à pandemia. Começa a entrevistar uma senhora que empurra um carrinho lotado de itens. Ele descobre que ela é doméstica, está ali para fazer as compras que a patroa vai estocar. Escolhida a dedo para ser exposta aos riscos no lugar da patroa, ela cumprimenta o repórter com o cotovelo. Se protege como pode na trincheira do trabalho precário, inseguro e infectado.

Assisti a reportagem e lembrei de uma conversa que tive em janeiro com Fran, quando o Coronavírus ainda não estava entre nós. 

Natural de Assaré, Francisca dos Santos tem 36 anos, está desempregada há quatro e é beneficiária do Bolsa Família. Fran morou um tempo no Rio de Janeiro, mas o salário de R$ 1.300,00 não cobria o custo de vida de quem tem quatro bocas para alimentar e aluguel para pagar. A situação financeira a fez retornar ao Ceará em 2015 por acreditar que aqui seria melhor. Desde então, não tem renda fixa. Em Juazeiro, ela encontrou algumas oportunidades de trabalho. Nenhuma vingou. Condições sub humanas. Em uma situação, trabalhando como diarista, a patroa quis descontar das diárias pífias uma camisa de marca do marido, manchada acidentalmente na hora da lavagem. Dois meses de trabalho não pagariam o preço de uma camisa nova. Na época da entrevista, Fran havia vendido a moto para comprar mercadoria de duas empresas de perfumaria e revender. A caderneta com os nomes de freguesas inadimplentes era extensa. 

Fico me perguntando como está Fran com essa pandemia. O Bolsa Família foi cortado para 158 mil beneficiárias no Brasil. A maioria, 68%, no nordeste. Beneficiárias está no feminino não por vício de linguagem, mas porque, via de regra, o programa entende duas coisas: mulheres aplicam melhor o dinheiro e ter o controle dessa renda pode aumentar o poder decisório delas no lar. Com a crise atual, imagino que uma das piores decisões para essas pessoas será escolher entre comprar os mantimentos ou bancar a água limpa e o sabão com os R$ 181 recebidos por mês. O encolhimento do Bolsa Família é o aumento de mulheres na linha de pobreza. E mulher pobre é mulher vulnerável a aceitar um emprego numa casa onde a patroa prefere adoecê-la com um vírus fatal, a ter que dispensá-la e fazer a própria comida por alguns dias. Ironicamente, a dispensaria facilmente se manchasse acidentalmente uma peça de roupa e não tivesse como pagar por isso. 

 

O vírus não escolhe quem atacar. Nossa sociedade foi quem escolheu há muito tempo quem estará na linha de frente em sacrifício. Portanto, definitivamente, precisamos incluir classe e gênero como categorias de mais vulneráveis à infecção por Coronavírus.

 

Dentro de casa, assegurada em seu isolamento, as trabalhadoras também não estão seguras. O confinamento pode desencadear uma epidemia de violência doméstica, como ocorreu na China. O vírus não escolhe quem atacar. Nossa sociedade foi quem escolheu há muito tempo quem estará na linha de frente em sacrifício. Portanto, definitivamente, precisamos incluir classe e gênero como categorias de mais vulneráveis à infecção por Coronavírus.  As mulheres pobres são parte do grupo de risco. 

Uma corrente nacional entre comunicadores, jornalistas e influenciadores pede que patroas liberem domésticas, diaristas, faxineiras, babás e cuidadoras. Sobretudo, que continuem pagando seus salários para que possam passar por essa pandemia sem sucumbir à miséria. Mais do que nunca, é preciso reconhecer os privilégios nossos que são letais para as outras e abrir mão. Nos próximos meses, todos estaremos em uma grande crise financeira. A diferença é: quem estará viva e saudável para superar?

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