Francisco Novaes, o Mestre Nena, que ajuda a mostrar que o João Cabral é mais do que dizem ser. Foto: Bruna Santos.
Nem sempre olhamos o mundo com calma. Na pressa por resolver isso ou aquilo, esquecemos de enxergar a vida com os ricos detalhes que ela tem. De que vale tentar se aprofundar nas identidades e nas manifestações que ocorrem ao nosso redor? Talvez sejamos ensinados que o mais fácil é apenas aceitar o que dizem que somos.
Mas somos mais. Como afirma um mestre, daqueles cuja humildade só se encontra em quem carrega um grande saber: “não somos só isso”. O mestre tem nome, é Francisco Novaes, também chamado de Mestre Nena. É ele um dos que abriga, em meio ao bairro tantas vezes reduzido ao rótulo de perigoso, aquilo que sua boa teimosia, como gosta de dizer, trouxe de melhor ao mundo: a cultura viva do reisado.
Nesse local que carrega suas contradições, e dentro dele possui mecanismos para superá-las, existe uma casa azul, na Rua Senhor do Bonfim, n° 524, bairro João Cabral, Juazeiro do Norte. Um azul tão intenso quanto o céu em dias sem nuvens. Ali, o reisado, o Ciclo de Reis e a cultura popular não se limitam a dois meses do ano. Ali insistem em dizer a cada segundo que “nós somos mais do que dizem sobre nós”.
Lá, está o Museu Orgânico Casa do Mestre Nena, um projeto do Sesc Ceará — do Sistema FeComércio — em parceria com a Fundação Casa Grande, que ressignifica as casas dos mestres, transformando-as em lugares de memória afetiva, abertos à visitação e ao turismo local. No coração do João Cabral, é possível apreciar objetos pessoais, fotografias, vestimentas, instrumentos e tudo o que transformou, e ainda transforma, o bairro.

Delimitação do bairro João Cabral. Foto: Reprodução / Google Maps.
Como um bom teimoso, Mestre Nena relembrou como começou a transformar um território, que no início nem ele pensava em mudar. Foi em 12 de maio de 1963, aos 12 anos, no Sítio Malhada, zona rural de Crato, tendo como mestre o Mestre Moisés Ricardo, que iniciou sua trajetória. Cresceu na vida e na brincadeira, foi embaixador e contra-mestre.
Aos 18 anos, criou seu próprio reisado no Sítio Altos, junto aos amigos Chicô e Decir. Ainda jovem, brincou com o Mestre Aldenir e o Mestre Chico Corró. Depois de um ano de estiagem e sem boa colheita na roça do Sítio Malhada, mudou-se com a família para Juazeiro do Norte e se engajou nos reisados locais. Brincou com Mestra Margarida, Mestre Mosquito, Mestre Luiz, Mestre Sebastião e Mestre Bigode, uma verdadeira escola de mestres, na qual hoje integra.
Em 2006, entrou para a Cia. Carroça de Mamulengos – União dos Artistas da Terra da Mãe de Deus, participando do Guerreiro com a Mestra Margarida e no Grupo de Bacamarteiros do Beato José Lourenço, com o Mestre Cachoeira.
Anos depois, o grupo se desfez, mas ele insistiu em afirmar: “não somos só o que dizem de nós”. Foi nesse mesmo território estigmatizado, onde dizem não ter paz, que em 2009 criou os Bacamarteiros da Paz.

Espaço reúne itens que contam a história de Mestre Nena e do grupo Bacamarteiros da Paz. Foto: Bruna Santos.
“Então, aqui, nós ensaiamos, nós ensaiamos, sentávamos, fazíamos as conversas, sentávamos. Aí cada um dava a sua opinião sobre o nome do que ia colocar no grupo. Aí teve uma das brincantes que disse: vamos botar o nome de Bacamarteiros da Paz. Eu disse pronto, não precisa outro. Esse pegou. Esse aqui, esse está bom demais, porque é uma brincadeira que a gente sabe que o Bacamarte é uma arma, mas eu faço esse trabalho é porque ele veio e eu abracei. Não é porque eu faço apologia à violência, não, muito contrário. Eu gosto da paz, então, o nome deu certo. Deu certo ali”, contou enquanto apontava o local em que o nome foi decidido.
É dentro dessas paredes do saber, mas especialmente fora delas, de onde sai o cheiro de café para toda visita, que a mudança acontece. Ao relembrar a inauguração, em agosto de 2019, ele falou sobre a importância de receber pessoas de outras cidades, estados e até países, que veem naquele bairro não apenas um ponto perigoso, mas um espaço com vida. Cada visitante ajuda a transformar a narrativa que é construída, mostrando que aquele local é mais do que os estigmas que costumam cercá-lo.
“Porque eu ter essa oportunidade que eu tenho, de receber todos vocês, de ser homenageado com vida, ir pra aqui, pro bairro, foi bom demais, porque todo mundo aceita, todo mundo gosta. Graças a Deus, eu aqui, nesse bairro, em todo lugar pra onde a gente vai, é muito mal falado… mas João Cabral tem muita coisa boa”, destaca Mestre Nena.

Inauguração do Museu Orgânico Mestre Nena, em 2019. Foto: Augusto Pessoa / Reprodução FeComércio.
Hoje a cidade vai (e deve ir) ao João Cabral
Além do Ciclo de Reis, que ocorre de dezembro a janeiro, a charmosa casinha convida todos a irem ao João Cabral em outros períodos do ano. Com a instalação do Museu Orgânico, não é mais apenas a apresentação que tem valor, mas a valorização do próprio mestre e da cultura desenvolvida pelas dezenas de grupos da comunidade.
“Durante o ano todo, seu centro cultural está aberto para visita, ensaios e apresentações do reisado dele. As pessoas veem o reisado dele”, explica Alemberg Quindins, gerente de Cultura do Sesc Ceará.
A mudança não está somente atrelada à fala ou às ideias, mas à prática. Todos vão ao João Cabral nos aniversários do Museu Orgânico, que ocorrem em agosto, e em eventos, cortejos e festivais populares. Afinal, por que não ir? “As pessoas queiram ou não, João Cabral é o celeiro da cultura de Juazeiro. Todo mundo sabe o que é cultura, todo mundo participa. Ajudou muito, desenvolveu, muita gente participa”, reforça Nena.

“Minha história é um pouco longa, mas vai dar certo, vai dar tudo certo”, diz Mestre Nena. Foto: Bruna Santos.
E a implementação de um espaço que leva a população ao encontro de um Mestre da Cultura, modificando e reescrevendo a história dos bairros, não se restringe à Juazeiro do Norte. “Em outras cidades onde também há museus, o território foi transformado. O mestre Antônio Luiz, em Potengi, tinha um lixão na estrada que levava ao seu espaço. A prefeitura retirou o lixo, justamente porque passavam os visitantes. Vendo o aumento de público e a dificuldade de estacionar, a prefeitura providenciou um estacionamento maior. Hoje, você tem um local adequado para receber todos durante a festa de reis”, comenta Quindins.
Ver com os olhos de quem olha com calma
Habitar o João Cabral e consumir sua arte e cultura tornou-se tarefa para os próprios moradores, que desejam mostrar que são mais do que dizem sobre eles. Há vida e saber nas ruas desniveladas, nas calçadas improvisadas, nas casas de cores variadas: amarelo, azul, branco, rosa, verde.
Maria Eduarda Soares, 19 anos, cresceu nesse cenário e guarda na memória uma imagem diferente da que costuma circular fora dali. “Desfiles de reisados e eventos como a festa de São Cosme e Damião são os que mais me marcaram”, relata. Para ela, os preconceitos e problemas socioeconômicos poderiam ser atenuados com mais espaços de cultura voltados à juventude. “Incentivos da prefeitura, apoiando a cultura organizada pela própria comunidade, poderiam transformar o bairro”, aponta.
Dona Margarida, 63 anos, moradora antiga, também contesta os olhares externos que reduzem o João Cabral a um local apenas de ausências. “ Aqui tem tudo, tem coisa boa. Vez ou outra enchem de menino querendo saber o que está acontecendo”, diz, referindo-se aos festejos que tomam as vias.

Bacamarteiros da Paz e Associação dos Bacamarteiros de Afogados da Ingazeira – PE. Foto: Reprodução / @cultura_cariri.
De acordo com Renato Willamis, secretário de cultura de Juazeiro do Norte, entre um dos papéis da cultura, essa que Mestre Nena carrega com tanto orgulho, está em despertar talentos e aprimorar habilidades, fazer com que o jovem se conecte às suas raízes e amplie sua perspectiva de vida. “O bairro João Cabral é um polo de cultura de Juazeiro. Grupos como o reisado enriquecem e transformam o bairro em um grande terreiro de cultura popular. As apresentações fortalecem o orgulho da comunidade e o espírito de pertencimento”, comenta.
Para quem observa com calma, o João Cabral revela-se como um território que guarda sentimentos e saberes. E, entre as limitações de saúde e as lembranças de quando pensou em desistir de transformá-lo, mesmo sem perceber, a resposta de Mestre Nena permanece firme. “Eu não desisto, não. Eu sou teimoso. Ah, não desisti lá no início, né? Quando aconteceu tudo. Eu não desisti, e meu intuito é dar continuidade. Enquanto o pessoal estiver querendo, e Deus, primeiramente Deus, me der vida e saúde que eu não tenho saúde, eu tenho problema de coluna, é muito, é 5 hérnias de disco, sou proibido de trabalhar na roça, de brincar pelo médico, mas eu não desisto.”
É dessa teimosia, em não aceitar apenas o que dizem ser, que brota a transformação. Porque, como ele próprio ensina, olhar o bairro e a vida em suas miudezas é compreender que o João Cabral é mais do que dizem, e que, na casa azul, existe não só a memória, mas também a possibilidade de futuro.

Mestre Nena fala com orgulho que parte do grupo de Bacamarte é formado por integrantes da própria família. Foto: Bruna Santos.

