
Casarao Juvêncio Santana, demolido em 2018. Foto: Reprodução.
No Livro dos Abraços, Eduardo Galeano costura memórias quase como quem colhe os estilhaços de um copo de vidro quebrado no chão, com cuidado. São nos pequenos relatos, onde o cenário são os prédios, as ruas, que ele conta a história e a memória de muita gente.
Como bem dizem, ele trata a memória como um bicho inquieto. Como algo que sobrevive nas esquinas, nos gestos das mãos, nas falas e em tudo que resistir ao tempo. E, se permitem que essa autora se coloque na narrativa, foi difícil não lembrar de Galeano quando caminhei esses dias pelo Centro Histórico de Juazeiro do Norte. Por onde podemos contar nossas memórias em detalhes miúdos?
A terra que hoje abriga mais de 250 mil pessoas nasceu da relação entre espaço, memória e fé. Em poucos anos, passou de vila a cidade-santuário, de polo migratório a centro urbano de referência no interior do Nordeste.
Hoje, porém, Juazeiro do Norte, nascida do encontro de romeiros de diferentes partes do Nordeste, perdeu boa parte de sua capacidade de narrar essa origem por meio das ruas, construções e espaços de convivência.

Casa histórica virou estacionamento. Foto: Acervo Hévila Ribeiro.
Mas afinal, o que é o centro histórico?
O centro histórico de Juazeiro é o espaço onde a cidade se originou. Nele estão localizados os principais marcos históricos e religiosos que atraem milhares de visitantes todos os anos, como a Praça Padre Cícero, o Largo do Socorro, o Rio Salgadinho, a Capela Nossa Senhora das Dores e as edificações que compõem o núcleo original da cidade.
Hoje, essa área sofre forte pressão do mercado imobiliário e da turistificação predatória, tornando-se cada vez mais, pouco a pouco, um espaço comercial. O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, datado de 2000, reconhece a região como “zona central” ou “centro histórico”, no entanto, não há delimitação específica nos mapas oficiais.
Quem mina a memória?
De acordo com Hévila Ribeiro, arquiteta e pesquisadora, as construções mais afetadas pelo processo de transformação no centro de Juazeiro do Norte são, em sua maioria, edificações térreas ou de dois pavimentos, erguidas entre o fim do século XIX e as décadas de 1940 e 1950. Estão principalmente localizadas nas ruas Padre Cícero, do Cruzeiro, Dr. Floro Bartolomeu, São José e São Francisco.
Um dos casos de maior repercussão foi a demolição do Casarão de Juvêncio Santana, em 2018. “Mas o apagamento não acontece apenas com a demolição: há também uma descaracterização constante das fachadas. A substituição de materiais originais por revestimentos, a instalação de letreiros que cobrem os elementos decorativos, o fechamento ou ampliação de vãos sem critério comprometem profundamente a leitura do valor histórico e arquitetônico desses imóveis”, diz Hévila.

Casarão Juvêncio Santana antes de ser demolido, em 2018. Foto: Reprodução.
Por conta da demolição, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) solicitou, na época, que o município realizasse o mapeamento de todos os bens imóveis passíveis de tombamento, com o objetivo de acompanhar e promover a preservação do patrimônio histórico local. Também foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta para reconstrução da fachada, que posteriormente foi reerguida perdendo as características do casarão original. Hoje, é considerada apenas um cenário.
Muitos desses prédios demolidos, segundo Hévila Ribeiro, continham elementos típicos da arquitetura local, como as paredes autoportantes, platibandas, janelas com esquadrias de madeira e ladrilhos hidráulicos. Eram moradias, comércios e espaços de convivência que contavam visualmente a história da formação urbana e social de Juazeiro. Hoje, deram lugar a estacionamentos ou empreendimentos voltados ao lucro imediato.
“Quando preservamos uma edificação histórica, não estamos apenas cuidando de uma estrutura física, estamos assegurando que as histórias que formaram Juazeiro possam continuar sendo contadas”, diz a pesquisadora.
Pelo pertencimento
Quanta história podemos reconhecer na arquitetura de uma cidade? Não são apenas paredes, são reflexos dos diferentes momentos da sua trajetória urbana, social e econômica.
Ainda, segundo Hévila, o centro histórico é composto majoritariamente por edificações térreas e de baixa altura, datadas desde o processo de formação do município, no século XIX, até meados dos anos 1950. Os estilos variam do colonial vernacular nordestino a influências da arquitetura moderna brasileira.
No início do século XX, as construções eram simples, ligadas à religiosidade popular e ao crescimento impulsionado pelas romarias. Apresentavam fachadas simétricas, telhados em cerâmica e platibandas ornamentadas, traços típicos da arquitetura tradicional sertaneja.
A partir da década de 1950, o modernismo começou a se impor, e surgiram as primeiras edificações públicas, como a sede da Prefeitura, construída em 1965.
Nas décadas de 1970 e 1980, houve um crescimento urbano acelerado e o aumento de investimentos comerciais. Nesse período, começaram a surgir edificações como a agência do Banco do Nordeste, com arquitetura diferente do que já existia no centro.

Edifício histório na Avenida Dr. Floro, n° 169. Foto: Hévila Ribeiro.
“Ao longo dos anos, o uso do solo no centro tornou-se majoritariamente comercial e de serviços, resultando na transformação das antigas residências em lojas, farmácias e escritórios. Muitas dessas adaptações provocaram alterações drásticas nas fachadas: remoção de elementos decorativos, substituição de janelas por vitrines, aplicação de revestimentos cerâmicos, apagando a leitura original dos imóveis”, explica Hévila.
É possível manter a memória?
De acordo com a Secretaria de Cultura de Juazeiro do Norte, o município possui 41 bens materiais tombados, dentre eles, imóveis que não podem ser demolidos ou modificados. Mas, segundo Hévila, preservar o centro histórico vai além do tombamento.
Ela aponta que a preservação precisa estar articulada a uma política urbana mais ampla, com ações integradas de requalificação do espaço público, estímulo ao uso habitacional e cultural dos imóveis e incentivo à economia criativa.
“Juazeiro do Norte precisa entender que proteger sua arquitetura é proteger também sua singularidade diante do mundo. Sem isso, corremos o risco de nos tornarmos apenas mais uma cidade genérica, onde o passado é substituído por um presente sem identidade”, explica.

Apontamentos feitos pela arquiteta e pesquisadora, Hévila Ribeiro, sobre a preservação do Centro Histórico de Juazeiro do Norte.
A pesquisadora também defende que o patrimônio edificado não deve ser visto como entrave ao progresso, mas como oportunidade de qualificar a cidade, gerar empregos e enriquecer o turismo.
E, é nessa luta para preservar o que torna Juazeiro do Norte única que surgiu o Memórias de Juazeiro, um projeto que nasceu a partir da pesquisa de graduação de Hévila, que pautava a preservação das edificações antigas do centro histórico de Juazeiro do Norte.
“A ideia inicial era compartilhar, por meio das redes sociais, conteúdos sobre arquitetura local, mas o projeto cresceu e se transformou em uma plataforma viva de educação patrimonial, com produção de vídeos, passeios guiados, oficinas e ações culturais que conectam moradores, visitantes e pesquisadores. Hoje, o Memórias é também um instrumento de resistência e valorização da identidade juazeirense, atuando tanto no meio digital quanto nas ruas da cidade”, diz.

Arquiteta está requalificando casa no centro de Juazeiro do Norte para manter viva a memória que defende. Foto: Reprodução / Redes Sociais.
Assim como Galeano recolhe fragmentos para reconstruir histórias que o tempo tentou apagar, o apagamento do Centro Histórico de Juazeiro do Norte, e o trabalho desenvolvido por quem quer manter viva essa memória, nos lembra que proteger o passado é também cuidar do que somos e do que ainda podemos ser.