
Maiara e Maraisa, Ronaldinho Gaúcho e Ana Maria Braga: famosos entram na trend do 'Studio Ghibli' — Foto: Reprodução
No mês de março, a OpenAI incorporou ao ChatGPT a nova versão do gerador de imagens da plataforma, o DALL·E 3, que permite a criação de imagens mais precisas e fotorrealistas. Com essa atualização, uma nova trend surgiu nas redes sociais: usuários passaram a utilizar a inteligência artificial para criar imagens que imitam o estilo visual do Studio Ghibli. A popularização dessas criações gerou um debate na internet sobre o uso da IA e os direitos autorais: estamos diante de um novo capítulo da criatividade — ou de uma zona cinzenta entre inovação e plágio?
ONDE A MAGIA ENCONTRA A ARTE FEITO À MÃO
Conhecido mundialmente por suas animações e suas filosofias artísticas, o Studio Ghibli conquistou um lugar de destaque no coração dos cinéfilos. Seus traços suaves, cenários detalhados e personagens poéticos traduzem não apenas uma técnica refinada, mas uma visão de mundo carregada de alma. Filmes como Castelo Animado (2004) e Meu Amigo Totoro (1988) são verdadeiros clássicos, reverenciados por públicos de todas as idades.
Hayao Miyazaki, um dos fundadores do estúdio, se tornou símbolo da defesa pela arte feita à mão, criticando o uso excessivo de tecnologias nas produções de animação. No filme A Princesa Mononoke (1997), acredita-se que Miyazaki tenha supervisionado pessoalmente as 144 mil células de animação do longa e redesenhado cerca de 80 mil delas, um testemunho de sua dedicação artesanal e visão criativa.

Hayao Miyazaki| Foto: Reprodução
Antes mesmo da recente polêmica envolvendo o ChatGPT, em 2016, Miyazaki já havia sido categórico em seu posicionamento contra o uso de inteligência artificial na arte: “Estou completamente enojado. Se você realmente quer fazer coisas assustadoras, pode ir em frente e fazer. Eu nunca desejaria incorporar essa tecnologia ao meu trabalho. Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida”.
Durante a trend, Hayao Miyazaki e o Studio Ghibli permaneceram em silêncio. No entanto, os fãs do estúdio japonês levantaram uma discussão nas redes sociais sobre a desvalorização do trabalho dos artistas e o uso de direitos autorais nas IAs.
A DISNEY ENTROU NA BRIGA
Em 2023, a Disney também enfrentou dificuldades com o uso da IA. Utilizando o Bing Image Creator, ferramenta da Microsoft, internautas começaram a criar imagens que imitavam o estilo visual das famosas animações da Disney.

IA cria imagens estilo a animação da Disney Pixar (Bing Image Creator / Microsoft)
Em resposta, a empresa bloqueou o uso do nome “Disney” no Bing Image Creator, impedindo que os usuários criassem imagens associadas à sua marca. No entanto, algum tempo depois, o termo foi novamente aceito pela ferramenta, mas com um detalhe: os usuários precisavam deformar o nome “Disney Pixar” nas imagens geradas. Isso levantou novas questões sobre: como as grandes empresas de entretenimento lidam com o uso de IA e o controle de suas marcas?
NEM A “TURMA DA MÔNICA” ESCAPOU

Mauricio de Sousa| Foto: Reprodução
Após a polêmica envolvendo o Studio Ghibli, a Turma da Mônica também se tornou alvo da inteligência artificial. Diversas imagens geradas no estilo dos quadrinhos infantis viralizaram nas redes sociais, gerando reações tanto positivas quanto negativas. Em resposta, o Estúdio Maurício de Sousa emitiu uma nota reforçando que os personagens da Turma da Mônica estão protegidos por direitos autorais e que qualquer uso não autorizado seria combatido legalmente.
O Estúdio Maurício de Sousa deixou claro que não é contra o uso da IA, mas defende um debate equilibrado sobre seu uso no campo artístico. A postura do estúdio reflete um ponto comum entre muitos criadores que veem a IA como uma ferramenta auxiliar, mas alertam para os limites éticos de sua aplicação no campo da criação artística e no respeito aos direitos autorais.
A LUTA CONTRA A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Em 2023, os roteiristas de Hollywood ficaram 148 dias em greve, protestando contra os estúdios, produtores e plataformas de streaming. A greve foi motivada por uma combinação de questões relacionadas a condições de trabalho precárias, baixos salários e o crescente uso da inteligência artificial (IA) no processo de produção de roteiros. A entrada das IAs na indústria do entretenimento gerou uma onda de preocupações sobre o futuro do trabalho criativo e os direitos autorais dos roteiristas.
Após meses de negociações, o Writers Guild of America (WGA), sindicato que representa os roteiristas, alcançou um acordo com os estúdios. Uma das cláusulas mais importantes foi a proteção contra o uso de IA para treinar modelos sem o consentimento dos roteiristas. Agora, os escritores têm o direito de proibir o uso de seus roteiros para esse fim.
Entretanto, o acordo também abriu um caminho para o uso controlado de ferramentas de IA no processo criativo. Os roteiristas podem utilizar inteligência artificial para auxiliar no desenvolvimento de roteiros, desde que haja consentimento expresso do estúdio e as normas internas sejam seguidas. A IA, portanto, não pode substituir os roteiristas, mas pode atuar como uma ferramenta para facilitar o processo criativo, como sugestões de diálogos ou ajuda na estruturação de cenas.
No Brasil, há o Projeto de Lei n° 2338/2023, que dispõe sobre o desenvolvimento, fomento e o uso ético e responsável da inteligência artificial, visando garantir segurança, transparência e proteção de direitos no desenvolvimento e aplicação dessa tecnologia. Atualmente, o PL está em tramitação na Câmara dos Deputados.
Além disso, o país possui órgãos de proteção à identidade criativa que garantem ao autor os direitos autorais sobre sua obra, como o Escritório de Direitos Autorais (EDA) da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), além de outros órgãos como a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e as associações de música afiliadas ao ECAD.
A China obriga que toda imagem ou vídeo gerado por IA tenha uma marca d’água para que o público consiga diferenciá-los da mão de obra humana. Inclusive, no território chinês, existe a possibilidade de que o autor solicite a exclusão de suas obras do banco de dados de uma determinada IA, se assim desejar.
NEM TUDO É PLÁGIO: OBRAS GERADAS PELO USO DE IA
O uso da IA na indústria cinematográfica tem gerado polêmicas e discussões no ramo artístico nos últimos anos. Enquanto muitos se preocupam com o plágio e a substituição de profissionais criativos, outros veem essas ferramentas como uma oportunidade de explorar novos caminhos e expandir os limites da arte. Confira algumas obras produzidas com o uso de IA:
Anime ‘Dog and Boy’

Foto: Reprodução
Lançado em fevereiro de 2023 pela Netflix, o anime Dog and Boy teve toda a construção de seus planos de fundo 100% produzida por inteligência artificial. Segundo a empresa, há uma “escassez de mão de obra para animes”.
O argumento foi amplamente criticado, visto que a inteligência artificial utilizou artes já existentes, disponibilizadas na internet, de outros animadores para criar a animação. Além disso, artistas, principalmente japoneses, questionaram a má remuneração dos produtores de anime em empresas de streaming. Ou seja, há mão de obra, mas não há valorização profissional, o que foi um dos fatores que culminaram na greve de Hollywood no mesmo ano.
Mangá Cyberpunk:Momotaro

Personagens da história de Cyberpunk Momotaro (Imagem via Sportskeeda)
O mangá Cyberpunk: Momotaro, lançado em março de 2023, teve suas ilustrações produzidas por inteligência artificial. O autor anônimo, Rootport, publicou em sua conta no X, alegando que utilizou a ferramenta por não possuir talento para desenhar, sendo essa a única maneira de criar sua história.
Vários artistas expressaram seu descontentamento, pois muitos fazem pausas em suas carreiras devido à dificuldade de criar personagens e ambientes. Segundo especialistas, um mangá como esse levaria cerca de um ano para ser produzido.
Apesar das críticas, a editora Shinchosha aceitou publicar a obra fisicamente, que até então era disponibilizada digitalmente por meio da conta do autor no X.
A PRECARIZAÇÃO DA ARTE
Com o mundo cada vez mais acelerado e tecnológico, a inteligência artificial tornou-se um recurso em que as empresas recebem o produto em curto prazo, diferente da mão de obra humana, pois a máquina, em segundos, cria uma obra artística que o ser humano pode levar semanas ou meses para produzir.
A Inteligência Artificial recria imagens a partir de textos e frases, utilizando um extenso banco de dados de obras que já existem. Artistas se inspiram em outros, mas, neste caso, são referências para criação de uma obra original, enquanto a IA utiliza produções reais para fabricar a obra solicitada.
A criatividade humana consegue transmitir nas imagens as emoções que o artista pretende expressar. A IA, por outro lado, apenas replica, criando algo impessoal, perdendo a parte essencial da arte: o sentimento desenhado em cada traço. Além disso, o uso de obras já existentes levanta discussões sobre direitos autorais e os desafios em torno da propriedade intelectual.
O debate sobre o uso da Inteligência Artificial não se restringe apenas ao campo jurídico, mas também ao cultural, e o que está em jogo não é apenas o direito autoral, mas o valor da criação humana em um mundo automatizado e apressado. Até que ponto a inteligência artificial pode coexistir com a arte humana sem desvalorizar a expressão e a sensibilidade dos artistas?